Lenira Haddad
Uma educação que gere cidadãos mais cuidadosos, responsáveis e comprometidos, capazes de contribuir para um mundo mais justo e pacífico, deve começar na primeira infância, uma vez que valores, atitudes, comportamentos e habilidades adquiridas nesse período podem ter impacto duradouro na vida
Em maio de 2007, 35 participantes de 16 países reuniram-se na cidade de Gotemburgo, na Suécia, para discutir o papel da educação infantil para uma sociedade sustentável. Uma diversidade de perspectivas, insights e experiências foi apresentada, ressaltando os vínculos entre a educação infantil e o desenvolvimento sustentável, o que resultou na publicação do documento The contribution of early childhood education to a sustainable society (A contribuição da educação infantil para uma sociedade sustentável) (Samuelsson e Kaga, 2008).
Alinhado com a ideia compartilhada de desenvolvimento sustentável como concepção de progresso que satisfaz as necessidades do presente, sem comprometer a possibilidade de as futuras gerações satisfazerem as suas, esse encontro foi movido por três evidências principais. A primeira é que nossas sociedades requerem com urgência novos tipos de educação, que possam ajudar a prevenir a futura degradação do planeta e que gerem cidadãos mais cuidadosos, responsáveis e comprometidos, capazes de contribuir para um mundo mais justo e pacífico. A segunda é que esses novos tipos de educação precisam estar disponíveis para todos e existir em vários contextos, incluindo famílias e comunidades. A terceira é que tais tipos de educação devem começar na primeira infância, uma vez que valores, atitudes, comportamentos e habilidades adquiridas nesse período podem ter impacto duradouro na vida.
Assim, a educação infantil ocupa claramente um lugar importante nos esforços trazidos para o desenvolvimento sustentável. A seguir, apresentarei os principais pontos de concordância decorrentes desse encontro.
Educação infantil e sociedade sustentável
A noção de criança inserida na visão de desenvolvimento sustentável é retratada na Convenção dos Direitos da Criança das Nações Unidas. Ela é um sujeito de direito, um participante ativo, e não um ser humano invisível, marginal e sem valor. Assim, tem sua contribuição a dar para o presente e o futuro da sociedade. Em uma educação para o desenvolvimento sustentável, as perspectivas e os significados da criança pequena são ouvidos, considerados e adaptados ao conteúdo e às abordagens de aprendizagem. Assim, recomenda-se que os princípios defendidos nesse documento (da criança como sujeito de direitos, da sua não discriminação e da defesa de sua participação) sirvam como base comum entre os países para conceituar e desenhar a educação infantil para o desenvolvimento sustentável.
Essa modalidade de educação infantil é muito mais que educação ambiental. Deve ser ampla e não simplesmente levar as crianças para áreas externas a fim de descobrir a beleza da natureza e falar sobre o ambiente natural. Deve incluir oportunidades para que se engajem em diálogo intelectual, relacionando sustentabilidade em ações concretas em favor do ambiente. Além disso, deve incorporar a aprendizagem de se ter compaixão e respeito às diferenças, igualdade e justiça, já que o mundo é cada vez mais interdependente e interconectado. A chamada é por uma mudança de conceitos e práticas que perpetuam divisões - entre pobres e ricos, países do Norte e do Sul, diferenças de gênero e desigualdades entre os países e dentro deles - a favor da interdependência, da solidariedade e da justiça.
Em uma educação infantil que contribui para a sustentabilidade, a diversidade tem papel crucial. Em um mundo globalizado, onde diferentes nacionalidades e etnias convivem cada vez mais entre si, aprender a respeitar e apreciar a diversidade deve começar cedo. A educação infantil deve ajudar as crianças a adquirir uma identidade firmemente fundada em sua cultura mais próxima, conforme desenvolvem um sentido de si mesmas como cidadãs do mundo. Uma maneira de promover isso é a educação intercultural. Nutrir respeito pela diversidade e apreciá-la não pode acontecer sem a adesão a valores e práticas. Democracia é um valor fundamental inserido em um desenvolvimento sustentável e um requisito para uma sociedade justa, em que a participação de cada um na vida cultural, econômica e política é valorizada. Aprender sobre valores e práticas democráticos deve ser parte integrante do programa de educação infantil.
O desenvolvimento sustentável requer pessoas capazes não só de pensar criticamente sobre questões que são tidas como certas, mas também de encontrar soluções criativas e alternativas às práticas insustentáveis que tendem a dominar o presente. O trabalho nos anos iniciais não deve estar voltado ao ensino precoce e formal da leitura e da escrita. A criança pequena pode ser encorajada a questionar o consumo excessivo através de discussões sobre produtos alimentares, roupas, brinquedos e anúncios publicitários. Tais discussões devem ser ampliadas para incorporar considerações sobre suas contrapartes em circunstâncias materialmente menos ricas e estimular conversações sobre solidariedade e cooperação.
As pedagogias da primeira infância como base do currículo
Grande parte do que existe nas tradições das pedagogias da primeira infância está alinhada à educação para a sustentabilidade. Por exemplo: a abordagem interdisciplinar, o holismo, o uso da área externa para a aprendizagem, a integração do cuidado, o desenvolvimento e a educação, a aprendizagem através de experiências concretas, os projetos da vida real e o envolvimento dos pais e da comunidade. Não é necessário inventar pedagogias inteiramente novas para fazer uma educação para a sustentabilidade nos anos iniciais. Questões relacionadas ao desenvolvimento sustentável são interdisciplinares por natureza. Pesquisas mostram que os conteúdos tradicionais e o ensino de conhecimentos baseados em disciplinas, comum nas escolas, não oferecem o melhor resultado na aprendizagem sobre desenvolvimento sustentável.
O documento da Unesco recomenda enfaticamente que o potencial das pedagogias da primeira infância seja reconhecido e explorado plenamente no trabalho com as crianças, utilizando-se a abordagem interdisciplinar de trabalho baseado em temas ou projetos, assim como a abordagem centrada na criança, no envolvimento dos pais e da comunidade e na ênfase à aprendizagem global, considerando que as crianças aprendem com a mente e o corpo, usando diferentes linguagens para dar sentido ao mundo, expressar-se e comunicar-se. Recomenda-se, assim, incluir no currículo da educação infantil:
contextos sensíveis e conteúdos culturalmente relevantes;
conteúdos que promovam atitudes de cuidado e empatia para com o ambiente natural e com as pessoas que vivem em outras partes do mundo;
aprendizagens acerca da diversidade;
aprendizagens de questões de gênero e igualdade de direitos, oportunidades e responsabilidades de meninos e meninas;
aprendizagens de habilidades básicas da vida;
aprendizagem para a sustentabilidade através do conceito de aprendizagem para a vida;
atividades que contemplem os 7Rs: reduzir, reusar, reparar, reciclar, respeitar, refletir e recusar.
Formação e condições de trabalho dos professores da educação infantil
Discutiu-se seriamente a importância crucial da formação dos professores da educação infantil e os tipos de formação desejados. A formação deve, acima de tudo, despertar a consciência dos professores sobre o desenvolvimento sustentável e o papel que a educação infantil pode desempenhar em promovê-lo. Deve ainda capacitá-los a direcionar adequadamente questões de sustentabilidade, reavivando valores e princípios associados à sustentabilidade em atividades com as crianças, e a prover oportunidades de questionar as crenças e práticas tomadas como certas.
Portanto, a formação não deve estar baseada no modelo unidirecional de educação transmissora de conhecimento do professor para com o aluno. Um ponto em debate, porém, foi em que medida a educação infantil deve dar peso ao ensino de habilidades acadêmicas e adotar a abordagem preparatória para o ensino primário em seu programa.
A oferta de uma formação de alta qualidade constitui uma das preocupações políticas prioritárias em relação aos profissionais da primeira infância, e esse trabalho para a sustentabilidade deve ser feito por meio da formação inicial e continuada. O baixo status e as condições de trabalho desfavoráveis dos educadores da primeira infância foram apontados como o maior obstáculo para almejar um papel crescente e ativo da educação infantil no desenvolvimento sustentável. É paradoxal que esses educadores, os quais exercem forte influência em modelar a personalidade e as disposições das crianças, tenham baixo status profissional e social. Promover melhores condições para o campo da educação infantil e seus profissionais é condição para uma sociedade sustentável.
Crianças pequenas e suas famílias: uma preocupação política prioritária
Existe um consenso de que assegurar acesso à educação e ao cuidado infantil de qualidade para todas as crianças é uma pré-condição importante para que as sociedades sejam sustentadas, assim como um objetivo essencial que todos os países devem perseguir. Toda criança tem direitos reconhecidos, como cuidado, aprendizagem, desenvolvimento e proteção adequados, e uma sociedade sustentada é aquela em que esses direitos são respeitados.
A primeira infância abrange o período em que as bases para o desenvolvimento são lançadas e deve ser percebida como o primeiro estágio da educação, o qual deve ser acessível, assim como o ensino fundamental. Há uma necessidade urgente de investimentos para melhorar o acesso, a qualidade e a equidade da oferta para a primeira infância e do apoio às famílias. Isso requer compromisso e liderança governamental por meio de ações que podem mobilizar as comunidades e envolver outros empreendedores, incluindo doadores internacionais.
Informações e pesquisas necessárias
Identificou-se um número insuficiente de pesquisas sobre o papel da educação infantil para uma sociedade sustentável. Assim, ficou evidente que é preciso coletar boas práticas em educação para o desenvolvimento sustentável nos primeiros anos encontradas em diferentes países e culturas, que possam inspirar e guiar o trabalho diário dos professores de educação infantil. Outras sugestões foram as seguintes:
pesquisa sobre os tipos de conhecimentos e habilidades que os professores precisam para oferecer uma educação infantil para a sustentabilidade;
estudos comparativos de atitudes tanto de professores quanto de crianças e concepções sobre sustentabilidade;
coleção de histórias de vida de pessoas famosas sobre suas experiências na infância e como valores, ideias e ações puderam ser modelados a favor do desenvolvimento sustentável;
pesquisa longitudinal sobre os impactos e benefícios da educação para o desenvolvimento sustentável nos anos iniciais.
Como conclusão, o documento sugere a imagem de uma sociedade sustentável como uma sociedade inclusiva, "na qual todas as pessoas são unidas por sua humanidade comum e as diferenças são respeitadas e valorizadas". Nessa visão, o desenvolvimento sustentável é facilitado quando todos os grupos de pessoas - independentemente de idade, gênero, etnia, status socioeconômico, local de residência ou capacidades - participam da busca por soluções e constroem um futuro sustentável para nosso habitat comum.
Nessa perspectiva desafiadora de transformar as sociedades segregadas em sociedades mais inclusivas, o documento lança algumas perguntas: os objetivos da educação infantil deveriam ser repensados e redefinidos? O objetivo da educação infantil deveria ser primeiramente promover competências e conhecimentos acadêmicos para o sucesso da aprendizagem nas etapas posteriores da educação, ou oferecer uma gama mais ampla de conhecimentos, habilidades e apoio (e, nesse caso, quais)? Os programas de educação infantil deveriam voltar sua atenção para as crianças e enfatizar recentes tendências em direção à avaliação de seus resultados? Alternativamente, eles deveriam servir a suas famílias? Se for assim, em que extensão e de que maneira?
Não existem respostas diretas a essas perguntas. Entretanto, quando vemos a educação infantil com as lentes da sustentabilidade, torna-se claro que isso requer repensar e redefinir com base em paradigmas que a apoiem.
lenirahaddad@uol.com.br
REFERÊNCIAS
SAMUELSSON, I.P.; KAGA, Y. The contribution of early child- hood education to a sustainable society. Paris: Unesco, 2008.
Fonte: Revista Pátio Online
17 de novembro de 2010
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